O defunto e a cerveja
Fernando Cupertino, especial para o Jornal Opção
– O Elpídio da Generosa morreu!
Com isso, Adolfo Cambota, o arauto de tão infausta notícia, provocou um grande alarido no bar Flor do Minho, respeitável e tradicional reduto dos paus d’água das vizinhanças.
– Mas não pode! Ainda ontem encontrei com ele no açougue de Zé do Corte, disse Siô Zezeu, depois de sorver com gosto uma boa talagada de cachaça.
– Pois morreu. Acabei de passar defronte à casa dele e, da rua, dava para ouvir os gritos de desespero de Dona Generosa – acrescentou Adolfo Cambeta.
– Coitada dela! Agora é que eles estavam começando a aprumar na vida, depois que Elpídio perdeu no carteado praticamente tudo o que tinham, ajuntou outro freguês…
Zé Português, dono do estabelecimento, envergando um avental sujo e surrado a adornar-lhe a imensa barriga, veio lá de trás do balcão com uma garrafa da branquinha e anunciou em tom solene:
– Era um bom freguês, o Elpídio da Generosa. É bem verdade que, às vezes, demorava a saldar as contas, mas, mais dia, menos dia, arrumava um jeito de pagar. Vai cá uma rodada por conta da casa, que é para honrar a memória do defunto.
E dito isso, verteu boas doses nos copos que rapidamente lhe foram apresentados pelos presentes.
Conversa vai, conversa vem, os méritos do extinto foram sendo logo decantados com o exagero próprio das loas que se fazem a quem passou desta para a melhor. Ninguém se lembra mais dos defeitos do morto… e mais: muitas vezes surgem qualidades até então completamente desconhecidas. Mas a vida é assim mesmo.
– Gente! – falou Osvaldinho Ranheta, com a voz pastosa a denunciar o excesso da bebida – precisamos comparecer ao velório… hic! Afinal, Elpídio da Generosa era companheiro de primeira hora aqui na nossa roda.
Houve um grunhido generalizado de aprovação à proposta. Zé Português trouxe logo a conta, na esperança de que o luto não impedisse que o débito fosse saldado. Feitas as contas, algumas notas amarfanhadas apareceram sobre a mesa, mas nem de longe cobriam o valor devido. O jeito foi tomar nota do saldo devedor, rateado entre três ou quatro, seguindo-se a velha e conhecida expressão:
– Ô Portuga, pendura aí que depois a gente vem acertar.
“Fazer o quê?” – pensou o português. O jeito era aceitar e começar logo uma novena para Santo Antônio, pedindo que o pagamento não tardasse.
A casa de Elpídio da Generosa não era distante, mas a marcha foi penosa. Afinal, os sentidos estavam completamente embotados e, para arrematar, Osvaldinho Ranheta, implicante que só, resolveu colocar em causa o cavanhaque de Seu Zezeu, que aparecera como uma completa novidade.
– Ô Seu Zezeu, se barbicha fosse sinal de respeito, bode não tinha chifres…
– Ocê me respeita, moleque! Vou lhe quebrar a cara!
A essa altura entraram em ação os deixa-disso e terminaram, não sem dificuldade, por apaziguar a situação.
Ao se aproximarem da residência, onde uma placa havia sido colocada de modo a assinalar o luto em família, ouvia-se o choro incontido de Dona Generosa e das duas filhas, Maricota e Tianinha, entrecortado vez por outra pelos “ai, Jesus! O que vai ser de nós?”.
Os companheiros de cachaça logo se acomodaram na pequena sala onde jazia o caixão, ladeado por dois castiçais. Fazia um calor dos diabos, e lá por volta das onze da noite, um deles, por sinal compadre do finado, com a garganta seca pelo calor e pela ressaca, teve uma brilhante ideia:
– Pessoal, vamos fazer uma vaquinha para comprar umas cervejas. O calor tá demais e, afinal, nosso amigo era um grande apreciador! Até mesmo Dona Generosa gosta de uma cervejinha.
Ao ouvir a conversa, a recém-viúva, também ressecada pelo calor e desidratada pelas lágrimas vertidas, interessou-se pelo assunto.
– Pessoal, tô achando que é uma boa ideia essa de alguém ir comprar uma cervejinha pra nós. Eu também participo da vaquinha, disse ela, já ameaçando abrir a bolsa para apanhar algum dinheiro.
Prontamente, o compadre respondeu:
– Ah, isso não, comadre!
– E por que não, compadre?
– A senhora já entrou com o defunto. Agora, deixe que o resto a gente ajeita…
Fernando Cupertino, médico, compositor e escritor, é colaborador do Jornal Opção
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