Vamos falar de suicídio?
Cresci numa cidade onde as leis de trânsito não costumavam ser obedecidas. À época, a prefeitura inventou um slogan que me acompanha até hoje. Quando íamos ao centro minha mãe o repetia: atravesse na faixa e na dúvida: pare, olhe e escute. Como ali cada um dirigia do seu jeito, o sinal verde dos pedestres diante do vermelho dos automóveis não garantia para ninguém segurança na travessia da faixa, daí a necessidade de usar todos os sentidos nessa travessia. E quando o motorista resolvia virar à direita, ou à esquerda sem “dar seta”? Conta a lenda que, nos anos 60, Roberto Carlos teria dito que aquelacidade parecia uma fazenda asfaltada e por isso nunca mais voltaria lá.
Outra lenda: naquela cidade todo motorista conhece uma pessoa no DETRAN. A Psicanálise me ensinou que na travessia de certas faixas que precisamos cruzar na vida o imperativo fale também é um recurso fundamental.
Vamos falar de suicídio? Como discutir as mortes trágicas de Jéssica Vitória (22/12/23) e, na sequência, de PC Queiroz (27/12/23) sem tratar disso? Em que medida trata-se de uma questão de Utilidade Pública, colocar esse tema na pauta do programa de Leonardo Attuch e Leonardo Stoppa, “Léo ao quadrado: quem matou PC Siqueira?” (247 Brasil, 28/12/23)? Calar-se diante desta questão pode ser considerado uma covardia, sugeriu o jornalista Leonardo Stoppa. Com delicadeza e responsabilidade, o jornalista escolheu falar dos riscos, danos que um sofrimento psíquico pode causar a uma pessoa a ponto dela não suportar e tirar sua própria vida. Ainda mais nesses dois casos implicadas diretamente com certo envenenamento das almas dessas vítimas de faknews, redes sociais. Isso poderia ter sido evitado? Estas considerações de Stoppa me remeteram ao texto freudiano Luto e melancolia .
No caso específico da melancolia, Freud nos dá pistas de como ler alguns sinais emitidos pelo melancólico que podem, ou não, conduzi-lo a uma passagem ao ato. Como na psicanálise cada caso é um caso, o psicanalista lerá tais sinais a partir da singularidade de cada sujeito.
O enlutado organiza, elabora seu sofrimento diante da separação espacial de um ente querido, da perda do emprego, casamento, bem material, de uma pessoa amada ou de um ideal... Logo, toda a perda de um objeto amado, demanda a experiência de um luto. Certa vez, após alguns meses falando sobre a sua dor, um analisante me perguntou: devo continuar gastando meu dinheiro fazendo análise para elaborar o luto ou comprar a placa, com o nome do meu pai, para por na sua lápide? Só o fato de ter ele dirigido essa questão à analista já evidenciou, para ele, qual era o seu desejo. Nesse caso, ele sofria pela perda de algo externo a ele e, por isso mesmo, pôde realizar tal homenagem simbólica à pessoa amada e assim concluir seu luto e retomar a sua análise. No luto a perda é real. Embora o melancólico tome emprestado algo do trabalho de luto, no caso de uma de melancolia há uma identificação do sujeito com o objeto perdido; ou seja, aí há “uma perda no próprio eu”, e não de algo externo a ele. Ao perder um gatinho, p.ex., o sujeito melancólico sofre como se ele estivesse no lugar do morto.
Talvez isso possa elucidar, em parte, algo daquilo que Stoppa falou sobre a diferença entre um sujeito que tem e um que não tem propensão ao suicídio. Uns conseguem realizar um luto quando perdem um objeto externo. Outros não, como é o caso daqueles que apresentam alguns traços melancólicos cujo sofrimento pode leva-lo à passagem ao ato diante de um acontecimento que ele julga que o seu mundo caiu e ele rodou junto. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu”.
Como cada um lida com o seu vazio? Ainda seguindo a fala de Stoppa, existem saídas... Isso depende da estrutura psíquica e dos recursos psíquicos do sujeito para pedir algum tipo de ajuda a um amigo, a um religioso, familiares, profissionais, à ciência, a arte ou mesmo ao animal de estimação – tal como podemos ver aos montes pelas ruas. Muitas vezes, o morador de rua só pode contar com o seu animal de estimação para suportar a sua dor de existir e não fazer uma passagem ao ato. Como é sabido, Clarisse Lispector contava com a escrita — Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim.
De todo modo, há que se respeitar a escolha de cada um. Há aqueles que desistem, como o artista plástico indígena Jaider Esbell, durante a 34ª Bienal de São Paulo onde era destaque. Em “Mote de si” (Cult, 2022) o psiquiatra e psicanalista Marcelo Veras discute o conflito existencial que acompanha o sujeito até o fim.
Os sinais de risco de suicídio são diferentes em cada caso. Porém, esse texto de Freud nos leva a prestar atenção nas questões sintomáticas: perda de amor próprio, auto-desnudamento de si, auto-depreciação, perda de sentido da vida — ou um abandono do próprio corpo, que Stoppa chamou de “desleixo”.
Entretanto, é a própria linguagem que mantém, e pode manter esse sujeito vivo.
O perigo é quando ele deixa de falar – aí que mora o perigo! Ao dizer “a minha vida não tem mais sentido”, “eu sou um bosta”, “pra mim tanto faz..”, “não suporto esse vazio...” o sujeito está sempre mais vivo do que nunca, na medida em que fala, escreve — não importa em que língua, de um ideal ou de uma imagem que toca seu corpo. Sinto-me bem em molambos, escreveu Clarice.
Quão penoso não deve ser para qualquer ser humano presenciar, experienciar — ao vivo e a cores, em tempo real — uma espécie de envenenamento da sua alma que pode produzir um tipo de morte simbólica, ou da sua imagem e dignidade, nas redes ditas sociais. Como vimos, PC Queiroz e Jéssica Vitória desapareceram de forma trágica no meio de uma intoxicação dessa. Quem se diverte com isso e por quê?
Alguns demonstram ter recursos psíquicos para suportar, outros não. Cada qual no seu quadrado. É conhecida a consequência que Lula tirou da sua experiência de ver o envenenamento da sua imagem, dignidade e história, pela e na rede Globo e toda mídia corporativa, bem como nas redes sociais (ou nada sociais). Sem saber Lula concretizou de modo especial a célebre fase de Sartre — O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós!
Precisamos falar de sadismo?
